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Aquilino, mestre das letras e da cidadania |
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27-Set-2007 |
Os beirões, os tenazes e insubmissos beirões, foram pintados por Aquilino Ribeiro com expressionistas pinceladas em "O Homem que Matou o Diabo", "O Malhadinhas", "Terras do Demo", "Jardim das Tormentas" e "Andam Faunos pelos Bosques", e com vigorosos traços neo-realistas em "Quando os Lobos Uivam", que foi proibido e valeu um processo ao seu autor por pôr em causa a política salazarista de florestação forçada dos baldios ("A serra é dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos. Quem vier para no-la tirar, connosco se há-de haver!").
No prefácio a "Terras do Demo" Aquilino, rechaçando críticas à "literatura regionalista" assume-se modestamente "mais cronista do que carpinteiro de romance". "(...) o meu lexicon é o deles; as minhas vozes ouvi-lhas". "A aldeia serrana, como aquela em que fui nado e baptizado e me criei são e escorreito, é assim mesmo: barulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos e instintos que constituem o empedrado da comuna antiga. Ainda ali há Abraão e os santos vêm à fala com os zagais nos silenciosos montes; ali roda o velho carro visigótico nos caminhos romanos, mais velhos do que eles. É pagã, e crê em sua religiosidade toda exterior adorar o Deus de S. Tomás. Conta pelo calendário gregoriano estes terríveis dias de peste, fome e guerra, e está imersa nos nebulosos tempos do rei Vamba".
Para se compreender verdadeiramente a obra de Aquilino necessário se torna embrenharmo-nos no cenário natural e antropológico que o inspirou. Sentir o cheiro da caruma, a sombra dos castanheiros e o grasnar da gralha para viver plenamente as páginas carregadas de lúcido bucolismo. Respirar a liberdade bravia dos seus modelos serranos para perceber o telurismo e a rebeldia do Mestre. Não só a rebeldia do jovem revolucionário que combateu a monarquia de pistola na mão, e a coragem do conspirador contra a ditadura salazarista (tendo pago a sua insubmissão com a prisão, o exílio e a censura), como a do intelectual refractário a escolas e correntes literárias, apesar de estribado numa sólida erudição e cultura clássica que lhe permitiu absorver influências várias (desde logo a influência da vivacidade lexical do povo, estigmatizada de curiosidade "regionalista") e recriar (ou libertar!) a língua portuguesa com a rara originalidade dos génios.
Aquilino Ribeiro soube ser culto para ser livre. Dividiu a sua vida entre a leitura apaixonada dos clássicos e a luta pela liberdade e a igualdade. Uma vida acossada: três vezes foi preso por motivos políticos e outras tantas se evadiu da cadeia e por duas vezes fugiu para o exílio em França, na Alemanha e na Galiza. Pelo meio viveu. E amou a vida. Amou as árvores, os bichos e as gentes que conheceu e que o moldaram como ser humano e como artista. Aquilino dizia que "o beirão converte a pedra em terra" - ele converteu a rudeza da linguagem e das personagens do povo no húmus da mais telúrica prosa portuguesa, ombreando com Torga. E, tal como o autor de "Novos Contos da Montanha", ao se debruçar sobre a riqueza da nossa terra e das nossas gentes, conseguiu universalizar a literatura portuguesa.
Aquilino Ribeiro podia e merecia ter recebido o prémio Nobel da Literatura, cuja candidatura muitos intelectuais em Portugal e no estrangeiro se esforçaram por promover, três anos antes da sua morte. Logo que esta foi noticiada, em 27 de Maio de 1963, a Censura proibiu os jornais de fazerem qualquer referência às homenagens que por todo o país lhe foram prestadas. Lamentavelmente, parece que o anátema salazarista ainda não foi revogado, mais de trinta anos passados sobre o 25 de Abril. Aquilino continua um escritor maldito, desconhecido da maioria dos portugueses.
A trasladação dos restos mortais do mestre para o Panteão Nacional, resolução da Assembleia da República, aprovada, por unanimidade, em 20 de Março de 2007, é um significativo sinal de serôdio reconhecimento. Aquilino ficará bem acompanhado ao lado de João de Deus, de Almeida Garrett e de Guerra Junqueiro. Já quanto à companhia de Óscar Carmona, talvez que nem a de Humberto Delgado (de quem foi apoiante activo durante a campanha presidencial do "General Sem Medo") impeça o mestre de se revirar no túmulo.
Mais importante, contudo, para honrar a memória de Aquilino Ribeiro seria a sua trasladação para os currículos escolares. Como é possível que um dos mais criativos e originais escritores de toda a história da literatura portuguesa, e um dos mais importantes do século XX, se não mesmo o maior, não seja estudado nas nossas escolas?
Quanto à petição que meia dúzia de monárquicos em vias de extinção pôs a correr contra as honras de panteão nacional a um "terrorista", preso por ajudar os "bombistas regicidas", são tiros de pólvora seca que só poderão fazer cócegas à alma granítica de um vulto com a envergadura moral do universal Aquilino.
Carlos Vieira
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